O MUNDO DO MEIO ONEIRON
CONTOANDO - Samir S. Souza

A Palavra Mamãe - Alberto Moravia


A PALAVRA MAMÃE
Alberto Moravia
tradução de
Aurora Fornoni Bernardini  
Homero Freitas de Andrade
Outubro 2011


Os acasos da vida são muitos, e encontrando-me uma noite no restaurante com Stefanini, assim, entre uma conversa e outra, perguntei-lhe se era capaz de me escrever uma carta como de alguém que tenha fome, esteja desempregado, seja arrimo de mãe doente de um mal incurável e, por esses motivos, se recomende ao bom coração de um benfeitor qualquer, pedindo-lhe dinheiro para matar a fome e para tratar da mãe. Stefanini era um morto de fome de marca maior, sempre sem um tostão, sempre em busca de uma oportunidade; mas era o que se chama de uma boa pena. Era jornalista, mandava de vez em quando um artigo a um jornalzinho de sua terra natal e, nas horas vagas, era capaz de rabiscar uns versos, sobre um ou outro assunto, com todas as linhas e rimas no lugar. Meu pedido interessou-lhe; e foi logo me perguntando para que eu queria essa carta. Expliquei-lhe que, justamente, os acasos da vida são muitos: eu não era escritor e podia chegar o momento em que uma carta dessas me servisse e aí não me aconteceria todos os dias ter à mão um Stefanini capaz de escrevê-la de acordo com todas as regras. Cada vez mais interessado, ele se informou se realmente minha mãe estava doente. Respondi-lhe que, pelo que me constava, minha mãe, que era parteira em sua terra, gozava de boa saúde; mas, enfim, tudo podia acontecer. Para resumir, tanto insistiu e perguntou que acabei falando a verdade; ou seja, que vivia, como se diz, de expedientes e que, na falta de melhor, um desses expedientes poderia ser justamente essa carta que lhe pedia para escrever. Ele não se escandalizou absolutamente, para minha surpresa; e fez-me ainda muitas perguntas sobre o modo como eu iria me comportar. Sentindo que já era meu amigo, fui sincero: disse-lhe que iria com aquela carta até uma pessoa cheia de grana e a entregaria junto com um objeto artístico, um bronze ou um quadro, avisando que tornaria a passar uma hora depois para retirar a oferta. O objeto artístico eu fingia dar de presente, em sinal de gratidão; na realidade servia para aumentar a oferta porque o benfeitor nunca queria receber mais do que dava. Concluí, afirmando que se a carta fosse escrita, o golpe não falharia; e que, em todo caso, não havia perigo de uma denúncia: tratava-se de somas pequenas e depois ninguém queria admitir ter-se deixado enganar daquele jeito, nem mesmo à polícia.

Stefanini escutou todas as explicações com a maior atenção e depois se declarou disposto a escrever a carta. Eu lhe disse que era necessário destacar três argumentos: a fome, o desemprego e a doença de minha mãe; e ele respondeu que deixasse por conta dele, que iria me atender a contento. Pediu ao dono do restaurante um papel, tirou do bolso a caneta e em seguida, após ter-se concentrado um pouco, o nariz para cima, lascou a carta rapidamente, sem nenhuma rasura, nenhuma hesitação, que era uma maravilha de se ver e quase não acreditava nos meus olhos. O amor próprio devia animá-lo porque eu o adulara, dizendo-lhe que sabia que era uma boa pena e que conhecia todos os segredos da arte. Quando acabou entregou-me o papel, eu comecei a ler e fiquei espantado. Estava tudo ali, a fome, o desemprego, a doença da mãe e tudo estava como se deve, com palavras tão verdadeiras e sinceras que por pouco não fiquei comovido eu também, que sabia que eram falsas. Em particular, com intuição perfeita de escritor, Stefanini tinha utilizado várias vezes a palavra "mamãe", em expressões como "minha adorada mamãe", ou então "minha pobre mamãe", ou ainda "minha querida mamãe", sabendo que "mamãe" é uma daquelas palavras que acertam em cheio no coração das pessoas. Além disso, tinha entendido perfeitamente o truque do objeto artístico, e o trecho da carta que tratava disso era uma jóia pelo modo como dizia e não dizia, pedia e não pedia e, enfim, jogava a rede ao peixe sem que esse pudesse perceber. Disse-lhe com sinceridade que a carta era realmente uma obra de arte; e ele, depois de rir com ar lisonjeado, admitiu que estava bem escrita; tão bem que queria conservá-la, e me pedia para deixá-lo copiar. De modo que copiou a carta, mais tarde eu, em troca, paguei seu jantar e logo depois nos separamos como velhos amigos.
Alguns dias mais tarde resolvi fazer uso da carta. Stefanini, falando de coisas à toa, deixou escapar o nome de uma pessoa que, segundo ele, cairia na certa: um advogado, Zampichelli,
cuja mãe, justamente, fazia um ano que tinha morrido. A perda tinha arrasado com ele, ainda segundo as informações de Stefanini, e era dado a praticar o bem, ajudando sempre que podia as pessoas pobres. Enfim, era o homem de que eu precisava, dado que não apenas a carta de Stefanini era comovente e convincente, mas também porque ele, por conta própria, tinha sido preparado para acreditar nela pelos acasos de sua própria vida. Uma bela manhã, então, peguei a carta e o objeto artístico, um leãozinho de ferro fundido dourado com o pé apoiado em cima de uma base de imitação de mármore, e fui bater na porta do advogado. Morava num chalé nos Prati, no fundo de um velho jardim. Uma criada atendeu e eu disse velozmente: "Este objeto e esta
carta para o advogado. Diga-lhe que é urgente e que volto a passar daqui a uma hora", entreguei-lhe tudo em mãos e parti. Passei aquela hora de espera, caminhando pelas ruas retas e vazias dos Prati e repetindo mentalmente o que devia dizer na presença do advogado. Sentia-me bem disposto, com a mente lúcida, e estava certo de que saberia encontrar as palavras e o tom necessários. Uma hora depois, voltei ao chalé e bati novamente.

Esperava ver um jovem da minha idade, era, ao contrário, um homem de seus cinqüenta anos, com uma cara balofa, vermelha, flácida, calvo, os olhos lacrimosos, parecia um cachorro São Bernardo. Achei que a mãe morta devia pelo menos ter chegado aos oitenta anos e, realmente, em cima da escrivaninha havia uma fotografia de uma mulher velhíssima de rosto enrugado e de cabelos brancos. O advogado estava sentado junto a uma mesa cheia de papéis, com um robe de seda listrada, com o colete desabotoado e a barba comprida. O escritório era grande, repleto de livros até o teto, com muitos quadros, estatuetas, armas, vasos de flores. O advogado me recebeu como um cliente, pedindo de imediato, com voz aflita, que me sentasse. Em seguida, apertou a cabeça entre as mãos, como que para se concentrar, dolorosamente, por fim disse: "Recebi sua carta... muito comovente.''

Pensei com gratidão em Stefanini e respondi: "Doutor, é uma carta sincera... por isso é comovente... foi escrita de coração."

"Mas por que, entre tanta gente, dirigiu-se justamente a mim?"

"Doutor, quero lhe dizer a verdade, sei que o senhor sofreu uma grave perda", o advogado me escutava com os olhos entrefechados, "e pensei: ele que sofreu tanto com a morte de sua mãe, entenderá a aflição de um filho que vê a própria mãe morrer, por assim dizer, diante de seus olhos, dia a dia, sem poder ajudá-la..."

O advogado, ao ouvir essas palavras ditas em tom comovido porque eu começava a me esquentar, concordou com a cabeça, várias vezes, como que para dizer que estava me entendendo e em seguida, erguendo os olhos, perguntou: "O senhor está desempregado?"

Respondi: "Desempregado? É dizer pouco, doutor... estou desesperado... é uma odisséia tudo isso... passei em tudo que é firma, faz dois anos que estou passando e não encontro nada... doutor, não sei mais o que fazer."

Falara com entusiasmo. O advogado tornou a apertar a cabeça entre as mãos e em seguida perguntou: "E o que tem a sua mãe?"

"Doutor, tem uma doença aqui", disse; e, para impressioná-lo fiz uma cara aflita e toquei no peito com um dedo. Ele suspirou e disse: "E este objeto... esta estatueta?"

Tinha previsto a pergunta e respondi prontamente: "Doutor... somos pobres, aliás, somos indigentes... mas nem sempre foi assim... Antigamente éramos abastados, pode-se dizer...
papai..."

"Papai?"

Fiquei surpreso e perguntei: "Sim, por quê? não é assim que se fala?" "Sim", disse ele, apertando as têmporas; "é papai que se fala. Continue. "

"Papai tinha uma loja de tecidos... tínhamos uma casa montada... doutor, vendemos tudo, peça por peça... esse bronze é o último objeto que sobrou... ficava na escrivaninha de papai."

"De papai?"

Fiquei atrapalhado de novo, e dessa vez, não sei porquê, corrigi: "Sim, de meu pai... em suma, é nosso último recurso... mas, doutor, quero que o senhor aceite em sinal de minha gratidão pelo que puder fazer. . ."

"Claro, claro, claro", repetiu três vezes o advogado, sempre apertando as têmporas como que para dizer que estava entendendo tudo. Depois, ficou um longo momento em silêncio, cabisbaixo. Parecia estar refletindo. Finalmente voltou a si e me perguntou: "Com quantos emes o senhor escreve a palavra mamãe?"
Dessa vez fiquei realmente assustado. Achei que, ao copiar a carta de Stefanini, tivesse cometido um erro e disse, incerto: "Eu escrevo com dois emes, um no começo e outro no fim."

Ele gemeu e disse, quase dolorosamente: "Veja só, é por causa justamente de todos esses emes que acho a palavra antipática."

Agora me perguntava se, por acaso, a dor pela morte da mãe, não o tinha deixado com o miolo mole. Disse, ao acaso: "Mas é assim que se fala... as crianças dizem mamãe e depois, quando crescem, continuam dizendo pela vida afora, enquanto a mãe é viva... e mesmo depois. ''

"Pois bem" ele gritou, de repente, com voz fortíssima, dando um soco na mesa que até dei um pulo, "essa palavra, justamente porque tem tantos emes, me é antipática... extremamente antipática... entende, Lopresto?... Extremamente antipática... "

Gaguejei: "Mas, doutor, que é que eu tenho com isso?" "Eu sei" ele recomeçou, apertando novamente a cabeça entre as mãos, com voz normal "eu sei que se diz e se escreve mamãe como se diz e se escreve papai... até o pai Dante diz isso... já leu Dante, Lopresto? ''

"Sim, doutor, li sim... li um pouco."

"Mas apesar de Dante, as duas palavras me são antipáticas" ele continuou "e talvez mamãe me seja mais antipática que papai."

Aí me calei, sem saber o que dizer. Depois de um demorado silêncio, arrisquei: "Doutor... compreendo que a palavra mamãe, por causa da infelicidade por que passou, possa não lhe agradar... mas deveria, ao mesmo tempo, ter um pouco de compreensão por mim... todos temos uma mam... quer dizer, uma mãe."

Ele disse: "Sim, todos..."

Silêncio, de novo. Depois ele pegou meu leãozinho da mesa, estendeu-o dizendo: "Tome, Lopresto, pegue seu bronze de volta."

Peguei o bronze e fiquei de pé. Ele tirou a carteira do bolso, puxou, suspirando, uma nota de mil liras, e disse, estendendo-a para mim: "Você me parece um bom rapaz... por que não tenta trabalhar?. . . Desse jeito acabará indo logo para a cadeia, Lopresto. Olhe as mil liras. ''

Mais morto do que vivo, peguei as mil liras e me dirigi à porta. Ele me acompanhou e na soleira me perguntou: "A propósito, Lopresto, você tem um irmão?"

'' Não, doutor advogado. ''

"Mas há dois dias veio um sujeito com uma carta idêntica à sua... a mãe doente, tudo igual... até o bronze, só que um pouco diferente: uma águia em vez de um leão... e como a carta era idêntica, pensei que fosse seu irmão."

Não pude deixar de perguntar: "Um moço baixinho... moreno, de olhos brilhantes?"

"Exato, Lopresto. "

Com essas palavras, me empurrou para fora do escritório e eu me vi de novo no jardim, o leãozinho de bronze falso apertado ao peito, atordoado.

Viram só? Stefanini tinha usado a carta, seguindo minhas instruções, antes de mim. E com a mesma pessoa. Juro, fiquei indignado. Que um pobretão, um desgraçado como eu pudesse usar a carta, ainda vá lá. Mas o Stefanini, um escritor, um poeta, um jornalista, ainda que mambembe, um cara que tinha lido tantos livros e até sabia francês, isso era demais. E que diabo, quando alguém se chama Stefanini, certas coisas não se fazem. Mas achei que a vaidade também tinha tido sua parte nisso. Devia ter pensado: "É uma bela carta, por que desperdiçá-la?", e então fora até a casa do advogado Zampichelli.

Retirado do livro: Contos Romanos; tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. - São Paulo: DIFEL,1985.

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