O MUNDO DO MEIO ONEIRON
CONTOANDO - Samir S. Souza

Posêidon, Prometeu, Sereias - Franz Kafka


Franz Kafka em 1903

POSÊIDON, PROMETEU, SEREIAS
Franz Kafka
Tradução de Flávio Moreira da Costa
Novembro & Dezembro de 2011

Não, Kafka nunca escreveu um conto com este título. Aproveitamos o tamanho de seus curtos, mínimos contos, para incluir três deles, referentes a personagens mitologicos. Todos, é claro, vistos com o olhar surpreendente, fantástico e de estranheza, típo do autor de A Metamorfose. As sereias, por exemplo, atraem Ulisses, não por seu canto (como na mitologia e na Odisseia) mas pelo seu silêncio. Posêidon, o Netuno dos romanos, não passava de um contador. E Prometeu... bem, deduzam vocês o que realmente aconteceu...


POSEIDON


Posôidon sentou-se no escritório, revisando as contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho interminável. Ele poderia ter tantos assistentes quanto desejasse, e de fato tinha um grande número deles, mas, como levava seu tra­balho muito a sério, teimava em reconferir todas as contas e assim os assistentes de pouco lhe valiam. Não se poderia dizer que ele se divertisse com a função,- levava-a adiante simplesmente porque era o que lhe haviam atribuído; em verdade, com fre­quência havia requisitado o que chamava de um trabalho mais alegre, mas, sempre que várias sugestões lhe eram oferecidas, o resultado era que nenhuma delas lhe era adequada como o era sua presente ocupação.

Não é preciso dizer que era muito difícil encontrar para ele qualquer outro trabalho. Afinal, ele não poderia ser responsável por um oceano em particular. Independen­temente do fato de que num caso como esse o volume de trabalho envolvido não seria menor, apenas mais trivial, o grande Posêidon só poderia ocupar uma posição superior. E, quando lhe foi oferecido um posto não relacionado com as águas, essa mera pos­sibilidade fez com que ele se sentisse doente, sua divina respiração tornou-se escas­sa e seu peito de aço começou a arfar. Para falar a verdade, ninguém levou sua rea-ção a sério; quando um homem poderoso se queixa, todos devem aparentar concordar, por mais irreal que seja o caso. De fato, ninguém jamais considerou a possibilidade de retirar Posêidon de sua posição; ele estava destinado a ser o Deus dos Mares desde os tempos imemoriais, e assim era que devia continuar.

O que mais o aborrecia - e era esta a causa principal do seu desconforto com o tra­balho - era saber dos boatos que circulavam a seu respeito; por exemplo, de que ele estava constantemente fazendo cruzeiros pelas ondas com seu tridente. E no entanto lá estava ele sentado nas profundezas do oceano do mundo revisando contas sem pa­rar; uma visita ocasional a Júpiter era a única interrupção dessa monotonia; além do mais era uma visita da qual retornava invariavelmente furioso. Consequentemente, ele pouco via dos oceanos, a não ser de relance quando subia rapidamente ao Olimpo e, na verdade, nunca chegou a cruzá-los. Costumava dizer que estava adiando aquilo tu­do até o fim do mundo, pois deveria então surgir um momento tranquilo quando, pou­co antes do fim e tendo repassado a última conta, ele ainda teria tempo para fazer uma rápida excursão pêlos mares.


O SILÊNCIO DAS SEREIAS

Prova de que medidas inadequadas, ou até mesmo infantis, podem servir para sal­var alguém do perigo:

A fim de se proteger das Sereias, Ulisses tapou seus ouvidos com cera e pediu pa­ra ser amarrado com correntes ao mastro do navio. Naturalmente, qualquer viajante antes dele teria feito o mesmo, exceto aqueles que foram por elas encantados mesmo a grande distância; mas era do conhecimento do mundo todo que essas coisas de na­da adiantavam. O canto das Sereias podia penetrar qualquer material, e a resistência daqueles a quem elas seduzem seria quebrada por coisas mais fortes do que fortes amarras, mais fortes do que correntes e mastros. Mas Ulisses não pensava a respei­to, embora provavelmente tenha ouvido falar nisso tudo. Ele confiava cegamente no punhado de cera e nas correntes, numa inocente conclusão a respeito do seu peque­no estratagema montado para o encontro com as Sereias.

Dessa vez, as Sereias tinham uma arma ainda mais fatal do que seu canto, ou se­ja, seu silêncio. E, embora se admita que uma coisa como essa nunca tenha aconte­cido, ainda seria admissível que alguém pudesse ter escapado do seu canto; mas do seu silêncio, certamente nunca. Contra a sensação de ter triunfado sobre elas apenas com sua própria força interna e a consequente exaltação que tudo derruba antes dis­so, nenhum poder terreno consegue resistir.

E, quando Ulisses se aproximou delas, a poderosa cantoria não se fez ouvir, fosse porque elas pensaram que aquele inimigo poderia ser vencido apenas com o seu si­lêncio, fosse devido ao olhar de felicidade de Ulisses, que pensava apenas na sua cera e nas suas correntes, fazendo com que elas se esquecessem de cantar.

Mas Ulisses, se assim se pode dizer, não escutou o silêncio; ele pensou que elas estivessem cantando e que só ele não as escutava. Por um breve momento, ele viu seus pescoços subirem e descerem, suas respirações arfarem, seus olhos cheios de lá­grimas, os lábios semi-abertos, mas acreditou que aqueles eram acompanhamentos para as canções que morriam, não ouvidas, ao seu redor. Logo, no entanto, tudo de­sapareceu da sua frente; enquanto ele mantinha os olhos fixos ao longe, as Sereias li­teralmente desapareceram diante de sua determinação e, no momento exato em que elas estavam mais próximo dele, ele nada mais percebia.

Mas elas - mais cativantes do que nunca - esticaram seus pescoços e se viraram, deixando seus cabelos flutuar ao vento, e livremente estirando seus dedos sobre as ro­chas. Elas não tinham mais qualquer vontade de atrair; tudo o que queriam era reter o maior tempo possível o brilho que emanava dos grandes olhos de Ulisses.

Se as Sereias possuíssem consciência, teriam sido destruídas naquele momento. Mas elas permaneceram como sempre foram; tudo o que aconteceu foi que Ulisses lhes escapou.

Um adendo ao descrito foi também legado às gerações seguintes. Ulisses, é o que se diz, era tão astucioso, era uma tal raposa, que nem mesmo os deuses do destino conseguiam furar sua armadura. Talvez ele tenha realmente percebido, embora o en­tendimento humano fique aquém de tal profundidade, que as Sereias estavam em si­lêncio e as tenha enfrentado, e aos deuses, usando o pretexto anteriormente mencio­nado simplesmente como uma espécie de escudo.


PROMETEU


Existem quatro lendas relativas a Prometeu:

De acordo com a primeira, ele foi preso num rochedo do Cáucaso por ter traído os segredos dos deuses em benefício do homem, e os deuses enviaram abutres para se alimentarem do seu fígado, que era perpetuamente renovado.

De acordo com a segunda, Prometeu, atormentado pela dor de bicadas dilacerantes, foi se colando cada vez mais profundamente ao rochedo até vir a se tornar parte deie.

De acordo com a terceira, sua traição foi esquecida ao longo de centenas de anos, esquecida pêlos deuses, pêlos abutres e por ele mesmo.

De acordo com a quarta, todos foram se cansando daquele caso sem sentido. Os deu­ses foram se cansando, os abutres foram se cansando, a ferida cicatrizou de cansaço.

Restou a inexplicável massa do rochedo. A lenda tentou explicar o inexplicável. Como ela se originou de um substrato de verdade, era de se esperar que acabasse inexplicável.
(The complete Stories, Franz Kafka, editado por Nahum N. Glatzer,
Shoken Books, Nova York, 1971)


Retirado do Livro: 13 dos Melhores Contos da Mitologia. Organização, seleção, introdução e notas por Flávio Moreira da Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. pg. 117 – 122.

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