O MUNDO DO MEIO ONEIRON
CONTOANDO - Samir S. Souza

Paulo (Desencanto) - Elvira Carvalho


PAULO - DESENCANTO
Elvira Carvalho (Portugal)

Lá fora, a noite dorme em silêncio.

A madrugada aproveita e vem, pé ante pé para tomar o seu lugar. No céu, sem nuvens, as estrelas observam curiosas. Algures, em qualquer recanto deste nosso universo, alguém abre lentamente uma janela. É um homem. Um homem jovem na idade, que carrega no peito uma angústia que não sabe explicar. Paulo nunca soube explicar o que se passa com ele. Sentir sim. Ele sente cada hora, cada minuto amassado na rotina duma vida que não deseja. Paulo é um homem novo, mas não raras as vezes se sente tão frustrado, que se julga um velho. É um homem culto. Estudou. E completou os seus estudos, na leitura de grandes escritores. Lê muito. E escreve. Escreve belos e amargos textos nos quais deixa impregnado o que lhe vai na alma. Apaixonado e sonhador, Paulo enamorou-se do próprio Amor. Na janela, ele olha sem ver a rua, absorto nos seus pensamentos. Na cama Graça, a mulher dorme. Paulo olha para ela, com um misto de amor e pena:

- Coitada, deve estar muito cansada – murmura entre dentes.

Graça é uma boa mulher. Que ele ama muito. Tem sido uma boa companheira, e deu-lhe dois filhos. Dois filhos por quem ele daria a própria vida. Graças a eles consegue suportar aquela vida insípida, que por vezes ameaça sufocá-lo.
Mas Graça está longe de ser o amor que Paulo tantas vezes idealizara. Ele sonha com uma mulher apaixonada, que tenha os mesmos sonhos, os mesmos anseios, os mesmos desejos. Graça é uma mulher simples, bonita, boa dona de casa, boa mãe, até mesmo boa amante. Mas com ela, ele não pode discutir aquele livro que o entusiasmou, não pode recitar aquele poema do Torga que ele sente como se fora ele a escrever, não pode contar-lhe das vezes, que deixa o seu corpo no emprego, e evade o espírito para outras paragens, outros trabalhos que satisfaçam as suas fantasias. Paulo não sabe se existe no mundo uma mulher como ele deseja. Mas tem uma certeza. Ele gostaria que essa mulher fosse a sua esposa. Volta-se e olha-a.

Mais bonita do que nunca, no abandono do sono, os cabelos soltos espalhados na almofada.

Encheu o peito de ar, suspirou, e fechou a janela. Dirigiu-se para a cama. Graça, acordou, olhou-o surpresa, sorriu e esticando os braços enlaçou o marido e puxou-o para si. E enquanto se perdia nos braços da mulher, Paulo fez o que tantas vezes fazia no emprego. Deixou que o seu espírito se soltasse e voasse para longe. Para um lugar só dele, um lugar que apenas existe nos seus sonhos de homem insatisfeito e desencantado.


0 comentários:

Postar um comentário