O MUNDO DO MEIO ONEIRON
CONTOANDO - Samir S. Souza

Os Mortos - Flávio Moreira da Costa


Os MORTOS
Flávio Moreira da Costa

Setembro


Ele estava parado no meio da noite, no meio da noite, esperando que o mila­gre acontecesse. Ele estava parado e sozinho no meio da noite, nem som­bra na rua — rua que se esticava até formar um cotovelo, na esquina ilumi­nada pela luz do poste. Sentinela do silêncio, ele estava parado no meio da noite quando percebeu um chamado:
— Psiu!
Mexeu-se rápido, como animal assustado: virou-se, enfrentando a escu­ridão; recuou, encostou-se à parede, metralhadora na mão.

— Quem está aí? — a voz saiu firme, mas não enxergava nada, ninguém.
— Sou eu.
— Eu, quem? — apontava a metralhadora.
— Sou de paz, vim fazer um pedido.

Os olhos abertos na noite; engoliu o cuspe, apertou as mãos contra a metralhadora, na certeza de segurá-la, como se pedisse socorro.

— Vim apenas pedir — continuou a voz — pra você não perturbar a paz dos mortos.
— Mortos? Que mortos? Do que é que tu tá falando? Parado no meio da noite, o silêncio fugiu, o medo chegou com aquela voz, espanto — em nenhum momento esquecer a metralhadora.
— Sim, os mortos, estou falando dos mortos. Eles precisam de paz, é um direito deles.
— Tá querendo me gozar? Por que tu não aparece? O cemitério fica longe, eu...

Nada além da voz — não conseguia pensar direito, é verdade que havia bebido antes de assumir o posto...

— O cemitério não vem ao caso, meu filho. Insisto que não é legal per­turbar os mortos...
— Mas... como é que...
— ...não é justo...
— Mas apenas cumpro meu dever, não estou perturbando ninguém. Recuou, encostando as costas na parede: podia ser uma armadilha, po­dia ter mais gente com ele.
— Seu dever é proteger os mortos.
— Chega, que papo é esse? Afinal quem é você que não aparece?
— Existem mortos por todos os lados, você deve saber disso. A avenida Principal está lotada de cadáveres e eles precisam de silêncio para dormir como mortos que são, mortos recentes...
— Mortos?

Conseguiu enxergar além da voz: um vulto, sombra. Não era um fantas­ma, não era alucinação — nem a bebida. Passou a mão pela testa suada.

— Diga logo quem é você, se identifique!
— Não vem ao caso, fui apenas encarregado de lhe pedir para não per­turbar os mortos.
— É melhor se identificar, não estou gostando desta história.
— Meu filho, falo sério: a avenida está cheia deles e outros ainda virão. Ao andar de um lado pró outro, você não dá sossego aos mortos. Não é possível, pensou. Lembrou-se da metralhadora, apertou-a.
— Espero que compreenda...
— Não compreendo porra nenhuma, você tá é maconhado — e pensou: deve ser isso mesmo.
— Eles começaram a chegar ontem, de caminhão — disse a voz. — Pilhas e pilhas deles foram despejadas na avenida Principal, logo ali, im­possível você não saber...

A sentinela pôs uma perna pra frente, como apoio:

— A autoridade aqui sou eu e meu dever é dar guarda na região. Se não se identificar, pode se considerar preso.
— Olhe bem pra mim — disse a voz. — Não me conhece? Com muito cuidado, deu um passo à frente, sem ver direito:
— Não conheço, não. Vai dizendo seu nome — mas nem tudo lhe pare-:ia estranho, embora não conseguisse se lembrar de nada.
— Meu filho, são três horas da manhã. Os mortos...
Era um velho, conseguiu perceber com as sobras da luz que vinha do poste.
— Seja leal com eles, não lhe custa nada. Um mínimo de silêncio... Eles se limitam a repousar no asfalto, não fazem mal a ninguém...
— Mas o que é que eu tou fazendo demais? Minha obrigação é ficar aqui e circular... — parou, enxugou a testa, tentava entender.
— Seus passos ressoam pela avenida...

Achou que devia reagir antes que o desconhecido o dominasse:
— Já falou demais, meu chapa: teje preso!
— Olhe bem, não se lembra de mim?
— Não — apontou a metralhadora, com raiva. — Desembuche.
— Sou o seu pai.
— O quê? — e pulou a ponto de agredi-lo. — Mentira, você é um louco!
— Sou o seu velho pai.
— Meu pai morreu...
— ...num desastre lá na fábrica. Filho, sou seu pai, por isso me encarre­garam de vir falar contigo...

Sem controle, contra a parede, apontou a metralhadora para ele — ele, tranquilo, e o soldado tremia de medo ou raiva:

— Mentira, mentira, mentira...

E disparou a arma contra o velho e se pôs a correr — e correu até chegar à avenida Principal e foi tropeçando nos cadáveres sobre o asfalto e conti­nuou correndo e disparando a metralhadora apontada para o chão e os tiros sacudiam os corpos deitados e só parou quando as balas acabaram e então exausto caiu no meio da rua juntando-se aos outros no meio da noite.

Retirado do livro Os melhores contos de medo, horror e morte. Organizador Flávio Moreira da Costa. Editora Nova Fronteira. pgs. 345-347.

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